4 de outubro de 2010

Sonho de armarinho - ou - O que o Drummond tem a ver com isso?


Mal conheci e lá fui eu visitar o armarinho sonhado pela Angélica. Um encanto! Menos balcão e mais sofá, do jeito que a gente gosta. Sortimento de materiais, aulas para todos os gostos, lugar para passar a tarde ocupando as mãos. Algumas vezes ocupa-se mais a língua, mas faz parte do ser mulher neste mundo. Assim que deixei minha sacola de panos para exposição, senti-me órfã. Bom, pensei com meus botões, os meninos precisam ganhar o mundo... Melhor assim, fabrico outros. Daí ouvi o poema O Elefante do Drummond ecoando nas minhas palavras e resolvi dar a vênia devida. Que fazer se ele disse melhor? Aí vai o poema, mas eu não quero encher linguiça (Ai que não me acostumo com a nova ortografia: que fizeram com o trema?)

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.

Eis meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.
E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.

5 comentários:

Gi disse...

Os portugueses têm-se queixado da nova ortografia; é engraçado ver uma brasileira, que aliás escreve lindamente, queixar-se também :-)
Um abraço, Ludmila.

Ludmila Ciuffi disse...

Pois é, deu tanto trabalho consolidar a regra antiga, que não quero consumir meu tempo com a nova. Mas isso é reclamação de gente velha... Obrigada pelo elogio, mas a verdade é que me divirto muito com o seu estilo. Lembro-me dos anos de universidade e da leitura dos clássicos portugueses.
Abraços, também.

Cheiro de Chuva disse...

Lindo poema... Quanto à nova ortografia, apesar de ser um acordo entre os países de língua portuguesa, somente o Brasil adotou, ou seja, foi um acordo de uma só pátria... Continuo com a antiga, que está valendo até o final de 2011...

Ludmila Ciuffi disse...

Deo gratia!

Angélica B. Lopes disse...

Ludmila, querida!

Já registrei no meu blog, aqui vai o registro no seu, sua presença no atelier foi um acontecimento muito feliz! Tenho certeza de que vamos compartilhar muitos momentos de bom papo, pesquisa e fios daqui em diante! Você quer saber o que o Drummond tem a ver com o sonho de armarinho? Tudo! Pura poesia, outra das minhas paixões, me senti lisonjeada com a associação de ideias (olha a nova ortografia aí rsrsrs).

Beijos, até a próxima visita! Angélica