23 de setembro de 2010

Penélope e os mantos Paracas

Pinturas em vasos gregos retratam Penélope a trabalhar num tear como este, com pesos nas pontas. Imagino que se trate de um tear propício a tecidos maleáveis, tais como deve ter sido o pano funerário que ela tecia para o sogro. Penso num tecido fino, tipo sudário e não num tecido encorpado como os mantos de Paracas. Por falar nisso, esse fabuloso povo do Peru antigo realizou aquilo que Penélope apenas esboçou, já que desmanchava o trabalho em horas tardias. Esse povo tecia seus indescritíveis mantos para sepultar com honras os destacados dentre eles. Esses panos existem, podemos vê-los nos museus. Quem sabe se algum dia Penélope concluiu seu trabalho... Se os mitógrafos pudessem, qual Midas, materializar o objeto de suas narrativas, facilmente veríamos Indiana Jones ou Heinrich Schliemann cavocando até as pedras da Lua em busca do velocino de ouro, da nau dos argonautas ou da caixa de Pandora. Contudo, justamente por serem imaginários, esses objetos continuam a nos inspirar decorridos alguns milênios. A mortalha de Laertes é um desses objetos míticos que desafia o talento de qualquer tecelão.
Os panos funerários produzidos por numerosas culturas pré-colombianas nada sabem da mitologia grega e da maneira européia de usar o tear. São eles sublimes por mérito próprio. Sua técnica e sua arte são testemunho da riqueza e sofisticação incomuns alcançadas por povos ditos "primitivos".

19 de setembro de 2010

Babados e Vampiros

Terminei mais um trabalho dos muitos que estão a caminho. Receita da Evelyn. Enquanto crochetava, não pude deixar de pensar em Lestat na Entrevista com o Vampiro. O livro não li, mas o filme tem seus momentos. Tom Cruise e Brad Pitt envoltos em camadas de   babados fizeram a alegria de apreciadores tardios do rococó. Pensei também na nobreza francesa e na guilhotina: quem deixava imaculados os babados que Robespierre tinha ao pescoço antes da invenção de Monsier Guillotin?

Devaneios históricos à parte, minha bela modelo possui ambas as coisas no lugar: as idéias e a cabeça. Não é nem vampira nem guilhotinável. Sua carta genealógica remonta a gente desprovida de brasão. Comme tout le monde, aliás. Também seu encantamento com vampiros mais recentes não vai além do makeup próprio da idade. Bendita maturidade!

16 de setembro de 2010

Tiyoko Tomikawa


Quem a conhece, sabe. Estudar tear com a Tiyoko é mais do que o aprendizado cuidadoso de inúmeras técnicas. Ela vai mais fundo, pois atou os fios de sua própria vida ao tear. Responsável pela oficina de Arte Têxtil do Sesc Pompéia, há 24 anos ela compartilha o conhecimento altamente qualificado que possui com qualquer um que queira entrar para o clube dos que tecem.  Já presenciei a Tiyoko ensinando soumak duplo e técnicas de kilim a pessoas leigas numa megafeira em São Paulo, ou o urdimento do tear pente-liço num banco de jardim... Ela oferece a cada um segundo o seu interesse e a todos atende com igual presteza. Há aqueles que a procuram para aprender a fazer xales e mantas para bebês, jogos americanos, tapetes e peças utilitárias. Há os interessados nas possibilidades infinitas de padronagem no tear de pedal. Há também aqueles que querem aprender a técnica minuciosa do gobelin para tapeçaria artística. Ela não sonega informação. Até as detentas do presídio feminino puderam aprender a tramar e a urdir algo mais concreto do que vinganças desesperadas ou esperanças débeis projetadas num futuro incerto.
Importa pouco a motivação de cada um,  vale mais a satisfação pessoal que cada qual obtém com a confecção de um têxtil nascido da interação entre expectativa e domínio técnico. É bonito de se ver, brotar das mãos um artefato feito de persistência e engenho.
Entre as alunas, brincávamos que algumas de nós tinham shoyo na veia. Na verdade, muitas tinham. Literalmente. Mário, Hissae, Keiko, Mioko, Harumi, Maria, Darci, Liliam, Renata, Emy, João, Cléo, Paula, Ritinha, Rosa, Audrey, Sueli, Marilena, Sandra, Suzana, Serjão. Pessoas com as quais topei na minha época. Há muitas mais.
Quase tudo que sei de tear aprendi com ela. Falta agora aliar a técnica à criatividade que cada um deve buscar dentro de si para trilhar o seu próprio caminho têxtil. Sei que a Mestra aprova.

Meus panos de aprendizado do tear artístico

Autocrítica

Exercício de círculo, curvas e texturas

O problema deste trabalho é que ele está sendo tecido sem um plano prévio. Não preparei nenhum cartão para ele; então, ele fica assim: pobre e sem rumo. Não sei o que quero dele. Este post também está assim: inútil. Na verdade não tenho nada para dizer. É que essa sensação de esterilidade incomoda e não acredito muito na inspiração das musas. Era melhor não ter escrito nada.

12 de setembro de 2010

Cachecol branco e preto

Tecido com linha fina e pente 4:1. Funcionou bem, porque o peso da linha deu um caimento bom para o cachecol. A padronagem é muito simplesinha: alguns fios pretos no urdume para sugerir um xadrez preguiçoso. Outro que fiz (e não tenho foto), misturei essa mesma linha com uma lã muito leve e felpuda, intercalando os fios do urdume. Batimento bem leve na trama. Ficou muito bom e bem mais quentinho.
O tear pente-liço tem essa qualidade boa que é a rapidez com a qual os trabalhos ficam prontos. No instante mesmo em que retiramos uma peça do tear ele nos convida a experimentar de novo com outra combinação de fios ou cores. Outros propósitos...

10 de setembro de 2010

Alegria é a prova dos nove

Ludmila Ciuffi
Luz e sombra absolutas. Pode alguma coisa ser mais anti-Miró do que branco e preto? Não sou daltônica, meu olho alcança todo o pequeno espectro de cores que foi reservado aos humanos. Tampouco sou triste: alegria é a prova dos nove, já disseram. Alegria é verde-limão, cor-de-abóbora, azul cobalto, amarelo ouro, vermelho queimado. O som de minha risada é colorido e estridente. Coerência e comedimento não possuem cor. Ou melhor, são variações em torno de cinza. Neutralidades.
Então, para não destoar muito, vivo em branco e preto, mas sonho colorido. E bordo também. Esta tapeçaria foi toda composta com elementos tirados de Miró, mas o colorido é meu.
O cachecol branco e preto não poderia ser mais neutro... Quase frio. Ainda mais pelo fato de ser tecido com linha fina. O calor que ele abriga não vem dele. Vem da alegria incontida de experimentar as cores e fazê-las falar.

3 de setembro de 2010

Tapeçaria de Bayeux

Apenas os contornos estão bordados...
Esta réplica que estou bordando tem cerca de um metro. Trata-se da representação de um fragmento da tapeçaria original, que contém setenta metros de imagens bordadas absolutamente fantásticas. A "tapeçaria" narra a história da conquista da Inglaterra por Guilherme, duque da Normandia, no ano de 1066. Ela foi bordada com lã sobre linho fino e é o principal documento histórico dessa conquista.
Em Bayeux fica o museu onde ela está exposta e na lojinha do museu é possível comprar kits para bordar. O kit compreende o linho riscado, as lãs nas cores e quantidades necessárias, a agulha para bordar, uma reprodução do fragmento a ser trabalhado e um gráfico com a chave de cores.
Este livro traz o registro fotográfico da tapeçaria inteira
A Sra. Chantal James ensina, em francês ou inglês, aos entusiastas, os segredos do ponto de Bayeux. Sempre às terças-feiras de novembro à março.

Por sorte, em meu trabalho, posso contar com a reprodução fotográfica maior e muito mais detalhada publicada no livro ao lado. Ele contém o registro fotográfico mais recente e completo da tapeçaria. Suas imagens foram colhidas durante os trabalhos de reforma do museu  onde ela se encontrava exposta. Ela foi estudada por diversos especialistas e, posteriormente, ganhou um novo espaço para exibição. Os visitantes podem admirá-la através de uma vitrine que a protege de mãos mais afoitas. Infelizmente, não é possível ver o avesso.

Detalhe com o risco ainda sem bordar
Meu trabalho vai indo lentamente, porque é necessário bordar primeiramente com ponto haste todos os contornos riscados, para depois preencher com cor o interior dos motivos.
Nessa parte não cheguei ainda, mas sei que ela é muito rápida, já que os pontos têm cerca de cinco centímetros! Não vejo a hora de terminar para vê-la emoldurada na parede... Quem sabe se ainda este ano!

2 de setembro de 2010

Tapetão

Este é o tapete a que me referi no post passado. Ele foi todo bordado com lã sobre juta em pontos arraiolos e ainda não está terminado, faltam o emborrachamento e o acabamento das bordas. De tradicional ele não tem nada: recolhi motivos aztecas (e um nazca) e montei neste "tabuleiro de xadrez" multicolorido. A idéia era usar cores fortes e muito constrastantes em cada quadrado. O resultado aí está: um carnaval colorido para espanto  de decoradores mais convencionais e aficcionados do Feng Shui. 
Quanto tempo levei para bordar? Vários anos, ao sabor das tempestades... Depois que resolvi terminá-lo à sério, em meados de março, foram quatro meses. Calculei cerca de 180 horas de trabalho aprazível. Um pouco por dia. Enquanto bordava (principalmente os quadrados sem desenho, onde não havia gráfico para seguir e as bordas), cantei, estudei (áudio de línguas), conversei e ouvi trechos de livros que me foram lidos por outrem. Trabalhos manuais repetitivos proporcionam uma capacidade de concentração realmente especiais. Se eu pudesse bordar enquanto assistia às aulas na universidade meu aproveitamento teria sido muito maior. É pena que tal procedimento não seja bem visto pelos professores...